sexta-feira, 15 de junho de 2012

33) A “reconstrução” da REAL

Super H Constellation da Real

Após a compra da REAL pela Varig, eu e meus companheiros que havíamos vindo para a tarefa de “erguer” a empresa combalida, fomos descobrindo aos poucos que a tarefa era muito pior do que imagináramos. A REAL devia para todo o mundo, não tinha mais crédito em lugar algum, os aviões estavam imundos e cheios de insetos, com pintura descascada, parando de voar por falta de peças. Os tripulantes não tinham mais uniforme e voavam com roupas comuns, os salários estavam atrasados e o ânimo dos funcionários em geral estava muito abaixo do desejado, especialmente após a venda para a VARIG, pois eles sentiam-se “vendidos” como escravos para a antiga e temida rival.

Nossa tarefa era, assim, não só melhorar o aspecto material da empresa fazendo-a voar com eficiência e categoria, como, talvez principalmente, elevar o ânimo dos funcionários, desmanchando aquela impressão de que “pertenciam” aos funcionários da VARIG, de quem haviam se tornado escravos. Aliás, infelizmente, essa impressão era alimentada por alguns funcionários da VARIG, mesmo alguns graduados, que se comportavam como se fossem, realmente, proprietários de tudo aquilo. Alguns desses apareciam subitamente em Congonhas, sem terem sido convidados, tentando assumir esta ou aquela chefia, ou dando ordens. Lutei contra isso e tive oportunidade de mandar de volta à POA, com o rabo entre as pernas, alguns desses intrometidos que só atrapalhavam nosso trabalho. Isso criou em umas poucas áreas de POA, um certo grau de ressentimento contra mim, para o qual eu estava pouco ligando.

Conseguimos aos poucos e com muito trabalho, corrigir os principais defeitos da REAL, transformando gradativamente a combalida empresa numa organização respeitada e eficiente que aos poucos foi se tornando equiparada à VARIG em qualidade de serviços e apresentação. Conseguimos assim que seus funcionários passassem a ter orgulho da empresa onde trabalhavam, com seus salários pagos em dia e uma série de outras providências que tomamos.

Formávamos um “team” de companheiros bem afinados com nossas tarefas, alguns da VARIG outros da própria REAL, e até não-funcionários, como por exemplo minha esposa Cecília e outras mais que, com o assessoramento de uma assistente social profissional, visitavam as residências dos funcionários mais humildes, registrando quais eram suas necessidades mais prementes, e providenciado para que recebessem, gratuitamente, ou mantimentos, ou roupas, ou remédios. Fizemos também um convênio com um bom hospital da cidade, no qual os funcionários da REAL (e da VARIG) eram atendidos gratuitamente. A Seção de Cargas da REAL era muito desorganizada. Perdiam encomendas, danificavam-nas, não sabiam o que pertencia a quem. Eu não tinha conhecimento de causa para assumir a reestruturação desse organismo. Então fui a POA e falei com o Chefe da Seção de Cargas da VARIG em POA, o amigo Müller, que mantinha seu departamento funcionando maravilhosamente, e pedi-lhe ajuda. Pois Müller foi a SAO e em dois toques organizou tudo. Mudamos nessa ocasião o setor de cargas da REAL, que era um grande galpão com frente para a rua, para o da VARIG, ainda no aeroporto, e que tinha espaço para acomodar tudo. Com isso, ficamos com aquele grande galpão vazio, e então ocorreu-nos a idéia de transformá-lo num super-mercado da REAL para seus funcionários. (Creio que a idéia foi do Hélio!). Assim, adaptamos o local para esse fim, com todos os efes e erres, e logo estávamos vendendo mantimentos e coisas de primeira necessidade para os funcionários e suas famílias, o que causou grande impacto positivo entre todo o pessoal.

Outra coisa que fizemos e que agradou bastante, foi a criação no super-mercado de um açougue que vendia carne aos funcionários e famílias, a preço de custo, isso porque vários daqueles funcionários e famílias talvez nunca tivessem comido carne. Aconteceu o seguinte: Havia no Estado do Pará um matadouro numa localidade não muito longe de Belém, que sacrificava reses e mandava as carcaças para Belem, de caminhão. Como as estradas eram ruins e o clima muito quente, a carne às vezes chegava estragada. Junto ao matadouro havia uma pista de pouso gramada. Então eles firmaram um contrato com a REAL, pelo qual um avião cargueiro saía de Congonhas às segundas feiras, pousava no local, carregava cerca de seis toneladas de carcaças bovinas e levava-as a Belem em pouco tempo, fazendo algumas viagens por dia. A carne chegava perfeita, pois o avião voava alto, onde era frio. No sábado o avião voltava a SAO para fins de manutenção e limpeza, retornando ao Pará na semana seguinte e começando tudo de novo. As viagens de ida e vinda eram pagas pelo fretador. Imaginamos então que poderíamos comprar algumas toneladas de carne fresca no matadouro, no sábado, e trazê-las a Congonhas para vendê-las aos funcionários por um preço muito menor do que cobravam os açougues da cidade. Para isso instalamos um pequeno açougue no super-mercado, uma câmara fria, e contratamos dois açougueiros que retalhavam a carne. Foi um legítimo e estrondoso sucesso!

Outra coisa que fizemos foi comprar nas cercanias da cidade um pequeno sítio, onde o pessoal podia relaxar. Nesse sítio, orientados pela Cooperativa Agrícola de Cotia, de japoneses, instalamos um aviário com cerca de mil galinhas poedeiras, cujos ovos eram vendidos também a preço de custo, em nosso super-mercado.

Outra coisa importante que fizemos, entre muitas outras, foi um acerto com o grupo de vôo da REAL no sentido de regularizar as promoções das diversas categorias. Isso porque, diferentemente da VARIG, onde tínhamos criado a duras penas uma lista de “senioridade” que disciplinava as promoções, o Consórcio REAL não tinha tal lista e as promoções de um equipamento para outro eram feitas subjetivamente. Como esses assuntos sempre haviam feito parte de minhas tarefas na VARIG, dediquei-me com afinco à difícil tarefa, fazendo várias reuniões com especialmente Comandantes, e conseguindo afinal disciplinar as promoções, acabando com as reclamações e encrencas especialmente por parte dos pilotos, pois cada um, antes da lista disciplinadora, se achava com mais direito do que os outros.

Estranhamente, nosso sucesso progressivo na REAL, que já começava a se equiparar à VARIG, ao invés de agradar nossos companheiro da RG, começou a despertar uma espécie de ciumeira entre certo pessoal da velha VARIG, da qual, afinal, fazíamos parte. Houve uma ocasião, durante as festas de Natal, em que, a exemplo do que se fazia na VARIG de POA, organizamos em Congonhas uma bela festa natalina, com sorteio de brindes para os funcionários e familiares presentes, brindes esses de certo valor, como geladeiras, fogões, etc. O pessoal da REAL nunca tinha visto coisa semelhante, e isso causou grande impacto, principalmente entre os mais humildes. Pois nós fomos criticados por certos Diretores da VARIG, que nos acusavam de privilegiar os funcionários da REAL, em detrimento dos da VARIG, e com dinheiro da VARIG, (o que não era verdade!). Coisas daqueles tempos conturbados !

Entre outras coisas que fizemos para melhorar o ânimo do pessoal da REAL, posso citar algo que ocorreu com o Sindicato dos Aeroviários em SAO. O Presidente desse sindicato chamava-se, se não estou enganado, Murilo. Ele era funcionário da REAL e costumava fazer preleções ao pessoal do estaleiro durante o expediente, o que desagradou muito à diretoria, que afinal proibiu o ingresso de Murilo no recinto da REAL. Ele não podia ser demitido por ser líder sindical, mas não podia passar dos portões da REAL. Quando eu assumi, era essa a situação, que desagradava aos funcionários, principalmente aos sindicalizados.

Um dia houve uma assembléia na sede do Sindicato, que era bem próxima às instalações da REAL. Como eu era sindicalizado, resolvi comparecer a esse ato, à noite, apesar da estranheza que minha presença causou, pois era a primeira vez que um Presidente de empresa comparecia a uma reunião sindical. Assisti a tudo que diziam sem fazer comentários, mas ao fim pedi a palavra e disse que a partir daquele momento o Presidente Murilo estava autorizado a ingressar normalmente no recinto da REAL, cumprindo com suas tarefas, porem fazendo seus pronunciamentos sindicais no intervalo do almoço. Não preciso dizer que a medida agradou a todos, principalmente aos sindicalizados, o que foi mais um trunfo a nosso favor.

Aliás, em meu tempo de REAL, nunca tivemos uma greve de aeroviários. Havia eventuais reivindicações, mas a gente sempre dava um jeito e as solucionava a contento. Houve porem, certa vez, uma greve de aeronautas que atingiu todas as empresas. Pleiteavam um aumento de salário, que nós em SAO e Berta no RIO, decidimos conceder a todos os aeronautas da RG e da REAL. Isso agradou, mas creio que por solidariedade aos colegas de outras empresas, nosso pessoal continuou em greve. Então, no dia seguinte à concessão do aumento, em Congonhas onde estavam nossos tripulantes e passageiros aguardando os acontecimentos, fomos eu e Helio Smith, às cinco horas da manhã, ao pátio onde estavam alguns tripulantes, e começamos a catequizá-los para que voltassem ao vôo, pois já tínhamos dado o aumento, e se voassem fariam com que os dirigentes das outras empresas também concedessem o aumento de salário face à concorrência que passaria a existir, caso somente a VARIG e a REAL voassem. Isso os convenceu, e logo começaram a decolar nossos aviões, acabando com a greve.

Enfim, lá pelo fim de 1963, a REAL estava saneada e se equiparava à VARIG em qualidade e eficiência de serviços. Então, por várias razões, decidiu-se juntar tudo numa só empresa (a RG) acabando com todas as outras: REAL, AEROVIAS, NACIONAL, AERO NORTE. Assim foi feito, e a resultante VARIG ficou uma grande empresa, crescendo de cerca de 4000 funcionários para cerca de 9000. Como a coisa ficara muito grande e com tarefas diferentes, dividimos a RG em dois grandes ramos interligados mas de certa forma independentes: A RAN (Rede Aérea Nacional) e a RAI (Rede Aérea Internacional). Ficamos eu na direção da RAN e Congonhas e Erik na direção da RAI, no Rio. Berta, como Presidente da Fundação, em última análise proprietária de tudo, pairava acima dos dois ramos. Todos os aviões foram pintados com as cores da VARIG, os uniformes dos tripulantes foram padronizados, a publicidade passou a ser só RG, e assim as coisas começaram a funcionar adequadamente, a contento (relativo) de todos. Todo o esforço que havíamos feito para reerguer a REAL e consorciadas, deveu-se a um punhado de gente da RG e da REAL, dedicado, abnegado, com salários modestos, que fazia qualquer sacrifício pessoal para o engrandecimento da empresa. Estão quase todos, senão todos, mortos. Hoje a VARIG não existe mais, tendo desaparecido, aparentemente, por má administração, o que é algo que, a meu ver, não se coaduna com o que fizemos durante muitos anos, e que não é fácil de entender. Será, “per Baco” que tudo que fizemos foi inútil?

5 comentários:

  1. Olá Cmtd, sou estudante prático do curso de piloto comercial e um apaixonado pelo que a Varig representou na aviação. É uma pena que as empresas atuais não tenham na administração alguém com a visão que os SRs tinham no passado, e com paixão pela aviação, a impressão que tenho é que o lucro deixou de ser um objetivo comum e passou a ser uma obsessão, não sendo mais importante o bem estar dos funcionários.
    Venho acompanhando o Blog do Sr desde o ínicio, e gostaria de parabeniza-lo pela iniciativa, concerteza estou aprendendo um pouco da história da aviação Brasileira pelos relatos que aqui estão. E também, creio que estudando o passado da pra ter uma ideia de como vai ser o futuro. Abraços.

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  2. Caro Luis: Obrigado pelas amáveis e elogiosas palavras em seu comentário. Fico feliz em saber que meus escritos estão agradando. Desejo-lhe sucesso em seu aprendizado, e felicidades na futura profissão. Abraços, Rubens Bordini

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  3. Fantastico, não só este texto, mas sim o blog todo.

    Muito obrigado cmte. por compartilhar suas experiencias na aviação.

    Abraços,

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  4. Olá Cmte ; sou filho de funcionário aposentado da Varig e meu pai hoje com 85 anos, não entende e não se conforma com o fim da empresa. A Varig tanto fez parte de minha formação pessoal, que batalhei muito até tirar o brevet de Piloto Privado, com quase 50 anos, pois meu sonho era ser Comandante da Varig. Infelizmente não deu tempo nem para mim, nem para a empresa, mas o gosto pela aviação e mecânica de manutenção ficaram.

    Um grande abraço de seu admirador, li seu livro "Vida de Aviador" várias vezes.

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  5. Caro Cmtd, convido para ver meus registros da Real em fotos no Pinterest. Agradeceria se tiver algo para que eu adicione nesta coletania de imagens.Abs e segue o link = https://www.pinterest.com/ctjardim/real-aerovias-redes-estaduais-a%C3%A9reas-ltda/

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