terça-feira, 26 de junho de 2012

50) Vamos buscar o Joca?


A escola VAE pertencia à VARIG e atuava em dependências construías na área cedida à VARG pela administração do antigo aeroporto São João, em Porto Alegre. A escola possuía alguns aviões de treinamento e planadores, que eram usados pelos alunos e instrutores. Todas as aeronaves eram de fabricação alemã de antes da IIa Guerra, pois a administração da RG era de origem alemã, com muitas ligações com o país germânico, e na opinião dos Diretores, somente aviões e planadores alemães eram válidos. Mesmo depois de começar a guerra, quando cessou a importação de bens da Europa, não se admitia a compra eventual de material aeronáutico norte-americano, apesar de ser essa a única fonte de tal material, pois a fabricação de aviões no Brasil estava apenas engatinhando.

No começo dos anos 1940, o jornalista Assis Chateaubriand planejou e concretizou o que se chamou de “Campanha Nacional de Aviação”, que seria a criação de uma “consciência aeronáutica” no país, considerando que o futuro transporte aéreo seria muito conveniente num país com a extensão do Brasil, e desprovido de outros meios de transporte adequados. A “Campanha” consistia em doações de recursos financeiros para a compra de pequenos aviões norte-americanos, que seriam doados a escolas de aviação existentes ou a serem formadas por todo o território nacional. Chatô (como era conhecido) pressionava capitalistas ou grandes empresários a doarem o dinheiro, o que acontecia sem dificuldades pois as quantias não eram muito elevadas, e todos temiam a pena ferina de Chatô, em sua rede nacional de jornais.

Pois a Campanha doou um avião à escola VAE, ou porque Chatô não sabia da ojeriza germânica a aviões americanos existente na VARIG/VAE, ou porque tenha querido provocar os alemães deliberadamente. Então o avião foi doado, mas permanecia há meses no fundo de um hangar, cheio de teias de aranha, pois os dirigentes da VAE não queriam recebê-lo.

A coisa estava nesse pé quando, de repente, o Brasil entrou na guerra contra o eixo Roma-Berlin. Houve em vários lugares, mas principalmente nos estados do RGS e de Santa Catarina, onde a influência germânica era considerável, manifestações populares contra o Eixo com quebra-quebra e prisões. Os alemães e teuto-brasileiros começaram a por “as barbas de molho”, e isso aconteceu com a Direção da VARIG. Nas oficinas e nas dependências da VAE, só se falava a língua alemã, até que num dado momento pude testemunhar a presença de Ruben Berta nos hangares, dizendo energicamente que doravante estava proibido falar alemão.

Assim sendo, a Direção da VARIG subitamente “lembrou-se” de que havia um aviãozinho americano (era um Taylorcraft asa alta, monomotor, com cabine fechada e assento para dois, lado a lado), em algum lugar do Brasil e que precisava ser resgatado numa demonstração de que o pessoal da VARIG não era nazista. Ante essa decisão, fui convocado por Otto Ernst Meyer, a autoridade máxima na VARIG daqueles tempos, e me apresentei em seu gabinete no centro da cidade. Disse-me ele que era preciso trazer o avião Taylorcraft, que não se sabia onde estava, e que eu tinha que ir ao Rio de Janeiro falar com Assis Chateaubriand em seu órgão líder da cadeia jornalística, “O Jornal”, na Avenida Rio Branco. Deu-me algum dinheiro para as despesas, o endereço de “O Jornal”, uma carta de apresentação e uma passagem de ônibus para o Rio. Sim, de ônibus, pois achavam que a passagem aérea era muito cara!

Viajei assim num ônibus aberto pela praia (não havia estrada) até Florianópolis (cerca de 19 horas de viagem), onde pernoitei. No dia seguinte fomos ainda no mesmo ônibus, a Curitiba onde trocamos para um ônibus mais confortável e fechado. Embarcou nessa cidade um rapaz simpático que sentou-se ao meu lado e que se destinava também ao Rio de Janeiro, onde ia assumir um posto no Departamento de Aeronáutica Civil. Era piloto Privado, engenheiro e chamava-se Seifert. Foi uma amizade que durou muitos anos e que me foi muito útil anos mais tarde, quando fundei a escola EVAER e o Seifert ocupava um alto cargo no DAC e muito me ajudou, pois era entusiasmado pela idéia.

Pernoitamos mais uma vez, já em São Paulo e afinal depois de alguns dias e muitas horas de viagem chegamos ao Rio. Procurei logo a Pensão Cardoso no Catete, que já conhecia de outras eras. Revi velhos e queridos amigos e no dia seguinte fui ao endereço de “O Jornal” procurar Chateaubriand. Lá me informaram que ele estava viajando, que ninguém sabia nem onde estava nem quando voltaria ao Rio. Chatô tinha comprado um potente avião monomotor bi-plano para 4 ou 5 pessoas um Beechcraft cujo modelo eu creio que foi único no Brasil, e com o mesmo andava por todo lugar onde houvesse pista para pousar, em suas atividades jornalísticas. Ele costumava aparecer subitamente, sem aviso prévio, ficar alguns dias no Rio e de repente partir outra vez para lugar ignorado. Ninguém no local sabia informar-me onde estaria o avião que eu viera buscar. Somente Chatô poderia dizer-me alguma coisa. Não tive pois remédio senão sentar-me no degrau da porta do jornal, saindo só para comer e dormir, por alguns dias até que, afinal, chegou Chatô de súbito, desembarcando de um automóvel e caminhando apressado para as escadas.

Levantei-me de onde estava e o interceptei. Encarou-me com uma certa má vontade, certamente devido ao meu atrevimento; Expliquei-lhe minha missão, e apresentei-lhe a carta que trazia assinada por Meyer. Ele passou rapidamente os olhos pelo documento, assumiu um ar mais rancoroso e disse algo como: “Então você representa aqueles alemães teimosos lá do Sul, que recusaram o avião que lhes foi doado, hein? Teria sido melhor dar para outros!” Tratei de usar minha melhor diplomacia para apaziguar o homem e defender “aqueles alemães” (note-se que naqueles tempos de guerra contra os nazistas, que estavam afundando nossos navios em nossa costa com seus submarinos, chamar de “alemães” era uma grave ofensa!). Chatô demonstrava grande má vontade, e eu vi perigar minha missão, até que, porem, ele notou meu nome na carta e perguntou: “Você é parente do General Bordini?” ao que eu respondi: “Sim, é meu tio, irmão de meu pai!”.

Aí a coisa mudou. Ele conhecia meu tio, de quem era amigo, e de repente eu me tornei simpático e aceitável, ao invés de representante dos supostos nazistas. Ele levou-me para seu gabinete, deu-me os papeis do avião que estavam numa de suas gavetas, e disse-me que o avião estava em São Paulo, no Campo de Marte, aos cuidados do Aeroclube de SAO. Feliz e contente com essa parte da missão cumprida, despedi-me de Chatô e fui para a Pensão Cardoso preparar minha viagem a SAO. Descobri que uma maneira razoável de ir à capital paulista era de trem, pois havia uma “Maria Fumaça” morosa mas barata, que ligava as duas cidades. Despedi-me, pois, dos amigos Cardoso e fui para a estação embarcar no tal trem, cuja viagem foi com o desconforto esperado, temperada por uma passagem dentro de um túnel, que encheu nosso vagão de fumaça a ponto de quase morrermos asfixiados. Ninguém a bordo sabia que a locomotiva encheria o túnel de fumaça e que a fumaça entraria para dentro do vagão se as janelas estivessem abertas. E estavam!

Em São Paulo hospedei-me numa pensão barata perto do Viaduto do Chá, e perto também, por acaso, como descobri depois, da filial local do DAC onde eu teria que encaminhar os papeis da matrícula de meu avião. Fui logo ao Campo de Marte e fiz contato com o pessoal do Aeroclube, onde encontrei não só meu avião, como um colega e amigo do Curso de Monitores que fizéramos juntos no Aeroclube do Brasil, em Manguinhos, em 1941. Foi-me esse amigo de grande ajuda, pois facilitou-me tudo, inclusive a vistoria no avião que fiz perante um oficial da FAB, o qual mandou-me decolar e fazer umas manobras, verificando se tudo estava OK. E não estava, pois o contagiros do motor não funcionava e eu não tinha como ajustar a potência em vôo de cruzeiro. Mas para não atrasar minha partida, disse que tudo estava OK e passei (durante toda a viagem até POA) a ajustar a potência pela velocidade.

Vistoriado, lavado e testado o avião, fui ao DAC local e encaminhei os papeis do avião para obter sua matrícula. A coisa era encaminhada ao RIO, sede do DAC, e de lá vinham de volta os papeis e a matrícula do avião. Isso levava alguns dias, que eu passei aprontando o avião e convivendo com o pessoal do Aeroclube. Como estávamos em guerra, não havia muita gasolina pelo caminho que eu seguiria. Consegui com o Aeroclube duas latas de 18 litros e enchi-as com gasolina ali em Marte, fechando-as com solda de estanho. Coloquei as duas latas cheias sobre o assento do avião do lado direito, e estava pronto para tudo, faltando somente os papeis do avião que estavam com o DAC.

Estava na pensão deitado e lendo um livro, sem nada que fazer, quando fui chamado por um empregado: Havia na portaria alguém que queria falar comigo. Fui até o local e me deparei com o engenheiro chefe do DAC em SAO, que, muito gentilmente, me trazia os papéis do avião com sua matrícula, que haviam chegado do Rio. Ele sabia que eu ansiava por partir e tivera a paciência e a boa vontade de ir até onde eu estava para entregar-me os documentos! Que extraordinária pessoa bondosa e cheia de boa vontade! Nunca esqueci o incidente, mas não guardei o nome do engenheiro. Que pena!

Afinal. Com tudo pronto, decolei do Campo de Marte e tomei uma proa para interceptar o litoral paulista rumo ao sudoeste. O tempo estava bom, mas havia uma camada de nuvens que quase encostava na beirada da serra que antecedia o litoral. Não podia passar para cima das nuvens, pois não tinha nem instrumentos nem referências para tal. Fiquei portanto por baixo da camada, voando rente ao solo, mas afinal passei a serra e me deparei com o belo e deserto litoral paulista, que eu não conhecia. Eu não tinha experiência de navegação aérea. Minhas pouco mais de cem horas de vôo tinham sido adquiridas ao redor de aeroportos. Mas naquele vôo, com boa visibilidade, tratava-se apenas de seguir a costa até minha terra, o que não me pareceu difícil. Segui assim até Paranaguá, onde pousei e abasteci gasolina de uma de minhas latas. Depois decolei rumo a Florianópolis, sempre me deliciando com o panorama litorâneo de meu país. Chegando a Florianópolis, procurei a pista de pouso que eu sabia ser na ponta SW da ilha, e lá pousei e taxiei o avião para junto das instalações da Base Aérea que lá havia e que fora construída pela antiga Aviação Naval. Fui recebido com cordialidade por um Sargento da FAB, a quem disse que pretendia pernoitar, se não houvesse inconveniente, perguntando-lhe como poderia conseguir condução para a cidade, que era bastante distante da Base. Disse-me, então, que eu não precisaria ir à cidade; que eles tinham alojamentos para viajantes com todo o conforto, inclusive banho quente e jantar, e que eu era convidado da FAB para ali ficar e jantar. Meu avião foi abastecido e guardado no hangar, e antes de tomar banho e descansar fui convidado para participar de uma partida de “volley-ball” com os soldados, que estava por começar.

Assim, acolhido por aquela gente tão hospitaleira, joguei volley, tomei banho e jantei magnificamente, pois as instalações eram, realmente excelentes. No dia seguinte despedi-me dos amigos da FAB e decolei rumo a Torres, no RGS. Foi uma viagem com bom tempo, sem qualquer dificuldade. Em Torres pousei e reabasteci o avião, com a ajuda do guarda-campo local, que adorava ajudar um dos raríssimos aviões que por ali passavam. Segui depois para Porto Alegre, mas ao passar por Osório resolvi pousar na pista local, onde ocorria um dos acampamentos de vôo a vela da VAE. Encontrei ali vários amigos e colegas que participavam do simpático acampamento que era hábito a VAE fazer no verão, devido ao vento constante que havia na região e que criava uma corrente ascendente que mantinha os planadores no ar. Meu avião, que se incorporaria à frota da VAE, foi muito admirado e houve muita gente que queria voar nele, mas eu tinha que entregá-lo em POA para a chefia da VARIG e por isso decolei rumo à minha cidade, para completar minha missão. Meus chefes, ao que parece, gostaram do sucesso que eu tivera, uma espécie de “mensagem a Garcia”, mas nada disseram. O avião? Sim, o avião foi batizado com o nome de “Joca” e voou bastante com os alunos da VAE, inclusive comigo como instrutor. Que foi feito dele? Não sei! Mas provavelmente virou sucata!

Um comentário:

  1. Maravilhosa historia cmte !
    Pena que a maioria destes aviões viraram sucata não ?!
    Nos USA é tão comum vermos DC3, DC&, p51, CAP's, etc...preservando a história da aviação, pena que o Brasil não seguiu esta cartilha.

    Abraços !

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